Com os últimos acontecimentos juridicos em nosso país e a discussão sobre o prtesto por novo juri, recebi este email da APMP que julgo de excelente valia para seu conhecimento e discussão sobre o tema.
Saber o Direito é conhecer a sociedade em que vivemos.
É legal ver o datenismo que abraça nossa sociedade, mas é importante entender o que o Direito diz sobre o caso.
Leiam:
A não recepção do protesto por novo juri pela constituição de 1988
por Fauzi Hassan Choukr
O “caso Nardoni”, diante da pena imposta aos condenados pelo Juiz Togado em estrita consonância com o veredicto do e. Conselho de Sentença, vem alimentando algum debate sobre a possibilidade do emprego do mecanismo não mais vigente no direito brasileiro denominado “protesto por novo júri”, sob o argumento de tratar-se de norma de “natureza” penal e, diante da data do cometimento do delito, ainda poder ser empregada pelos réus dada seu caráter mais benéfico.
A partir dessa premissa tem-se erigido a discussão da “natureza” da norma, e, em torno dessa premissa as posições oscilam entre ser ela possuidora de uma natureza “penal”, “processual” ou “mista” ou, com algum amorfismo, ser um mecanismo “garantidor”, incorporado aos direitos da pessoa acusada e, conforme a posição adotada, a impossibilidade ou não do manejo desse mecanismo, especificamente para os que entendem a “natureza” como “penal” ou “mista” ou, ainda, de “garantia”.
No presente texto reproduziremos algumas passagens de posição por nós adotada muito antes da reforma introduzida com a 11.689/08 que, ao nosso sentir, apenas trouxe para a legislação infraconstitucional o expurgo de um mecanismo que não resistiu ao texto constitucional de 1988, embora a doutrina e a jurisprudência pouco tenham visualizado a questão por esse prisma.
Cronologia legislativa do “protesto por novo júri”
Inserido como um “recurso” no Código de Processo Penal, o protesto por novo júri teve longa história no ordenamento pátrio. Com efeito,
“O protesto por novo júri foi acolhido pela legislação brasileira, através do artigo 308 do Código do Processo Criminal, de 29 de novembro de 1832. A Lei no 261, de 3 de dezembro de 1841, regulamentada pelo Decreto no 120, de 31 de janeiro de 1842, a ele se refere. Tal recurso tinha cabimento quando, no primeiro julgamento, o réu fora condenado às penas mais graves, quais sejam, morte ou galés perpétuas, conforme explica Espínola Filho. Desde a época imperial que se entende não poder o recurso em foco ser repetido, conforme o Aviso no 273, de 18 de outubro de 1849, conforme anotou Paula Pessoa no seu “Código do Processo Criminal”, seguido por Whitacker e Galdino Siqueira. No período republicano, a Lei no 18, de 21 de novembro de 1891, artigo 67, no 3, revigorou o entendimento de que tal recurso somente uma vez poderia ser interposto. O Regulamento Estadual no 1.575, de 19 de fevereiro de 1908, repetiu o que dispunha a Lei Federal no 18, já mencionada, acrescentando um parágrafo elucidativo, no sentido de que poderia presidir o segundo julgamento o juiz que presidira o primeiro. ... A maioria dos códigos estaduais, entretanto, estabeleceu o limite mínimo de condenação à pena de 20 anos de prisão, a fim de ser admitido o recurso falado. É, o caso dos códigos de Minas Gerais, Amazonas, Pará, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Espírito Santo e Rio de Janeiro”
Segundo Da Ponte ,
“O Protesto por Novo Júri nasceu com a precípua função de sanar eventual erro judiciário, já que era admitido nos primórdios, apenas nos casos de condenação à morte ou galés perpétuas. Permaneceu em nossa legislação ao longo dos anos, não obstante fossem a ele endereçadas severas e fundadas críticas. Hoje, quando a sociedade clama por uma Justiça mais célere e eficiente, apresenta-se como verdadeiro entrave, possibilitando àquele que subtraiu o bem maior do homem uma nova oportunidade de ser julgado. Sua manutenção em nosso diploma legal afronta a mais comezinha noção de interesse público, e faz que o bem “vida” assuma um papel subalterno na escala de valores sociais”.
Não recepção do protesto por novo júri pela CR/88 (antes da reforma da Lei 11.689 de 2008)
Diante da soberania dos veredictos constitucionalmente estabelecida não havia espaço para mecanismos como o protesto que, não sendo exatamente um recurso, impõe um novo julgamento fundada a remessa para outro Conselho por um fato do juiz togado: a pena imposta. Com efeito, a dosimetria da pena não é atribuição do Conselho de Sentença e é justamente com este fundamento que se justificaria uma nova apreciação do mérito da causa, violando drasticamente o juiz natural.
Nada obstante, a visão dominante da doutrina e jurisprudência não questionava a retirada desse mecanismo do ordenamento jurídico, repetindo práticas que se ajustariam perfeitamente ao momento em que o Código foi editado e diante da “constituição” (Carta de 1937) que o legitimava, mas que, rigorosamente falando, não têm qualquer amparo perante a Constituição da República de 1988.
Com efeito, a Carta de 1937 sabidamente não contemplou o tribunal do júri em seu texto, deixando à legislação infraconstitucional a tarefa de organizá-lo, o que se deu com o Decreto-Lei 167 de 1938. Assim, não haveria de se cogitar de conflito entre esse texto e a Constituição.
Mas o problema da incompatibilidade do protesto com o texto constitucional não é novo, podendo ser reconhecido entre o Código e a Constituição de 1946 que em seu artigo 141, no § 28 preconizava a soberania dos veredictos ao afirmar que “É mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o número dos seus membros e garantido o sigilo das votações, a plenitude da defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.” (sem grifo no original). Não se conhece, no entanto, qualquer referência questionadora dessa incompatibilidade que pudesse ter alimentado estudos dogmáticos ou posições pretorianas.
O mesmo problema se mantém com a Constituição de 1967 , mas desaparece com a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 que, em seu artigo 151 previa apenas o júri, mas sem o atributo da soberania em seu § 18.: “É mantida a instituição do júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida.”
Talvez em virtude dessas oscilações quanto ao atributo da soberania aos veredictos ocupou-se muito mais a jurisprudência – e a doutrina - em manifestar-se sobre questões pontuais acerca dos casos submetidos ao emprego dessa mecânica, posicionando-se sobre temas que, malgrado de alguma importância, jamais enfrentaram a compatibilidade constitucional.
Assim, por exemplo, discutia-se sobre o limite de vinte anos de pena para afirmar-se que, “descabe o protesto por novo júri, somente admissível quando um dos crimes ensejar pena igual ou superior a vinte anos. Aplicação da norma do concurso material de crimes, ainda que da soma resulte pena superior a vinte anos, que não dá ao réu o direito ao protesto por novo júri, consoante reiterada jurisprudência” .
Também como decorrência dessa ausência de flexão constitucional passava-se a criticar a existência (formal) do protesto pelo nocivo efeito colateral do rebaixamento da pena – mesmo quando merecidamente devesse ser superior aos vinte anos – para evitar-se a automática realização de novo plenário.
Mas a mecânica do protesto, fundando-se exclusivamente na dosimetria da pena imposta pelo Juiz Togado, e tendo como efeito a submissão a nova sessão plenária de avaliação de mérito ofende a soberania dos veredictos.
Aqui, ainda que se queira, não é possível fazer qualquer paralelo com a possibilidade do emprego do recurso de apelação por julgamento frontalmente contrário à prova dos autos, porquanto a soberania, nesse caso, foi empregada sem amparo em tudo quanto produzido ao longo do devido processo legal.
Isto porque há a necessidade de afastar-se, de imediato, qualquer sinonímia entre soberania e inquestionabilidade da decisão. Significa dizer que, embora soberana, o veredicto encontra-se sujeito a um sistema revisional que busque zelar pela sua efetiva legalidade.
No plano político (e este não pode ser esquecido vez se trata de matéria constitucional) a possibilidade de revisão justifica-se pela estrutura do estado democrático, onde inexistem atividades de poder estatal "absolutos". Ao não se admitir a revisão dos veredictos (numa imperfeita visualização do primado constitucional) estar-se-ia instituindo uma função estatal sem controle, impensável no sistema do estado de direito.
Por outro lado, a possibilidade de revisão das decisões do Conselho de Sentença insere-se dentro do modelo do due process of law, este compreendido como um feixe de garantias justapostas que, uma vez observadas, garantem a produção de um resultado "justo".
Numa relação jurídico-processual válida, o devido processo legal aparece com a observância dos princípios do contraditório, ampla defesa, juiz natural e - o que nos interessa mais de perto no momento - de licitude das provas, entre outros.
A complexa temática das provas e sua admissibilidade no processo tem hoje matriz constitucional, na medida em que o mesmo art. 5º acima apontado, em seu inciso LVI, proclama que "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos", quais sejam, aquelas produzidas em desconformidade às garantias constitucionalmente asseguradas e em desacordo com os ditames de legislação ordinária.
Serve de ponto de partida o texto supra para o problema enfrentado. Pode-se dizer que a soberania da decisão (veredicto) não pode estar apoiada em provas ilícitas de um lado, e, de outro, não pode desprezar as provas licitamente angariadas. Válido será, certamente, no cotejo de provas lícitas, a adoção valorada de uma das correntes, nisto consistindo um dos significados da soberania constitucionalmente estabelecida.
Mas a temática inserida na Carta Magna para o tema probatório ainda apresenta outro desdobramento para a edificação de um conceito de soberania em função dos veredictos do Tribunal do Júri. Diz respeito à impossibilidade do Conselho de Sentença afastar-se do acervo probatório ao ser alvedrio, e decidir sem fundamento nos autos.
É algo um pouco diverso da enunciação contida no texto do Código de Processo Penal. Na verdade, o conteúdo infraconstitucional primitivo não trabalhava claramente com a idéia de um "devido processo legal" (prisma pelo qual se visualiza o tema) daí porque não alcançar o modelo de licitude estrita da provas tal como enunciado no art. 5º da CR/88.
Interpretada a situação pela ótica do processo-constitucional pode-se delimitar outra fronteira para o conceito de soberania do veredicto: o julgamento contrário à prova (lícita) dos autos significa a quebra do princípio do due process of law porque introduz como base da decisão um elemento cognitivo inexistente entre as partes legítimas.
Difere esta situação daquela consagrada pela doutrina e jurisprudência (e já ventilada acima) que é a da opção entre provas (lícitas) contidas no acervo dos autos. A situação acima exposta traduz um limite "negativo" por assim dizer de soberania, enquanto a opção ora enfocada materializa a fronteira "positiva" dessa mesma idéia.
A decisão emanada pelo e. Conselho de Sentença encontra-se dentro do conceito "positivo" atrás mencionado, na medida em que, cotejando as provas lícitas contidas nos autos, opta por uma das valorações possíveis contidas no leque de possibilidades de interpretação.
Justamente na atividade interpretativa é que surge a legitimidade historicamente consagrada ao tribunal popular, na medida em que o julgamento "pelos pares" constitui uma garantia para o réu. A legitimação advém da "mesma linguagem" existente entre julgador e julgado, na medida em que próximos de uma mesma realidade social (e, ao menos em tese, com valores aproximados). Daí a idéia de um julgamento mais "humano" (em contraposição ao tecnicismo do profissional jurídico) na corte leiga.
Ora, o protesto por novo júri clama apenas por um novo julgamento, o qual se vê reformado ainda que baseado em provas lícitas e isto afronta, manifestamente, a soberania constitucionalmente prevista para o veredicto do Conselho de Sentença.
Outrossim, o reconhecimento ainda que muito tardio dessa incompatibilidade evidentemente não trará qualquer efeito negativo a todos aqueles que, antes de 2008, dele se beneficiaram, mas não pode ser mais alimentado em desrespeito à Constituição da República.
Esse fundamento torna menos importante ao caso concreto a discussão sobre a “natureza” da norma que, apenas a título conclusivo, não se afigura outra que não a estritamente processual pela sua exata funcionalidade no ordenamento já revogado e superado pela Constituição e a sua supremacia.
Promotor de Justiça (1989) Doutor (1999) e Mestre (1994) em Direito Processual Penal pela USP. Especializado em Direitos Humanos pela Universidade de Oxford (Nex College; 1996); Especializado em Direito Processual Penal pela Universidade Castilha La Mancha (2007).
MENDONÇA, Andrey Borges de. O protesto por novo júri e o casal Nardoni. Um estudo sobre a aplicação da lei processual penal no tempo. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2464, 31 mar. 2010. Disponível em:
Entre outros, PEREIRA, Romulo Andrade. O fim do protesto por novo júri e a questão do direito intertemporal. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1808, 13 jun. 2008. Disponível em:
GOMES et alli. Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito, Editora São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 261. Também citado por Mendonça, op. cit.
CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal – comentários consolidados e crítica jurisprudencial. RJ:Lumen Juris, 4ª Ed. no prelo. A posição ora adotada está presente desde a 1ª edição dessa obra, em 2005.
TUCUNDUVA, Ruy Cardozo de Mello. Protesto por novo Júri. Justitia 74/1971.
DA PONTE, Antônio Carlos. A evolução do Protesto por Novo Júri no Direito Brasileiro Justitia 171/1995.
Art. 150, § 18 - São mantidas a instituição e a soberania do júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
TJSP – Relator: Cunha Bueno – Apelação Criminal no 140.840-3 – São Paulo – 27.05.93